segunda-feira, junho 11, 2007

Desaparecendo (n)os artigos para o jornal I


Mais fácil que roubar um doce a uma criança

Qual é a coisa mais fácil do mundo? Ninguém sabe. Sabemos, no entanto, que há muitas coisas fáceis. Como sabemos nós isto? Pela quantidade de vezes que ouvimos dizer: “isso é mais fácil que roubar um doce a uma criança”.

Sendo esta uma das expressões que nunca compreendi, compreendo ao menos que ela é um critério de verificação da facilidade das coisas. Significa qualquer coisa como: “roubar um doce a uma criança” é (quase) a expressão máxima da facilidade, logo, se afirmarmos que existem algumas coisas “até” mais fáceis que isso então essas coisas apenas podem corresponder ao grau máximo de facilidade possível.

Como é óbvio, as coisas ás quais não acrescentamos a qualidade de serem “mais fáceis que roubar um doce a uma criança” contém nelas algum tipo de obscura dificuldade. Mas essas não interessam agora para aqui. O que sim importa agora é ressalvar que, por via deste critério, podemos verificar que o mundo tem uma porção bastante grande (quase a totalidade das coisas) de coisas fáceis.

Diz a aprendiz de cozinheira para a chefe de cozinha: “como se temperam as amêijoas sem que elas percam aquele gosto a mar?”. Resposta: “Isso? Isso é mais fácil que roubar um doce a uma criança”. Ou, entre dois amigos, “viste o filme de ficção científica que deu na quarta-feira? Aquilo sim são efeitos especiais fantásticos”. Responde o outro: “Aquilo? Aquilo é mais fácil que roubar um doce a uma criança”. Ou entre dois cientistas: “Não consigo entender como a teoria leibniziana de “o melhor dos mundos possíveis” encaixa com o teorema de Fermat sem, claro, contradizer o corolário demonstrado por Einstein acerca das pequenas partículas”. Diz logo o outro: “A sério? Isso é mais fácil que roubar um doce a uma criança”.

Para o que quer que seja, passada a frustração de nos sentirmos primeiramente uns idiotas, temos a consolação (a alegria até) de que aquilo que desconhecemos e nos inquieta ser, no fundo, de resolução bastante fácil. Mais que roubar um doce a uma criança.

Podemos pois alegrar-nos. Há coisas (muitas, por sinal há muitas) muito fáceis. Todavia o que não compreendo nesta expressão é que eu sempre a havia entendido como irónica, nos melhores casos, ou como estupidez, na maioria das vezes. È que há aqui duas coisas, uma que realmente me intriga, a outra que eu simplesmente gostava de saber. Passo a partilhar. O que eu gostaria de saber, e faz-me confusão de ninguém se preocupar com isto cada vez que ouve a expressão “mais fácil que roubar um doce a uma criança” é: afinal quem anda a roubar doces ás crianças? Minto. Pois isso é fácil de saber. Quem diz a expressão é porque anda a roubar doces ás crianças. O que eu queria mesmo saber é: porque raio de motivo andam certas pessoas crescidas a roubar doces ás crianças? Não podem roubar os adultos? Ou as lojas? São “docicodependentes”? Possuem um alter-ego que corresponde ao oposto do Pai Natal? Quando eram crianças e estavam a comer um doce aparecia sempre um adulto malvado a roubá-lo?

Não faço a mínima ideia. A sério. Mas gostaria de saber.

Quanto ao que me intriga, e que me fazia pensar que a expressão só podia ser irónica, é a forma como eu observo as crianças.

“Mais fácil que roubar um doce a uma criança”? Mais fácil é entrar no sistema de segurança do F.B.I., pensava eu. As crianças devem armar logo um berreiro, uma dança tribal-carnavalesca que chama a atenção a quem esteja do outro lado da cidade. Perto delas os alarmes anti-roubo das melhores e mais seguras instituições americanas são pardais contentes na Primavera. Aqueles “trim-trim” irritantes e prolongados, em comparação com uma criança insatisfeita, são mais melodiosos e harmónicos que a voz do Sinatra a cantar o “My way”.

Acrescente-se ainda que, caso o roubo seja bem sucedido (o que eu duvido), a criança lembrar-se-à toda a vida do rosto do mal-feitor. Passa-a para o seu arquivo secreto dos “vilões mais procurados e condenados sem julgamento a uma rasteira bem dada seja onde seja que for encontrado”. Tenho a íntima certeza de que não há ficheiros da C.I.A. ou do K.G.B. tão bem organizados como o cérebro de uma criança no que diz respeito a quem as mal trata.

Por tudo isto penso que seria mais apropriado dizer, quando confrontados com um problema difícil, “estou aqui atrapalhado com isto, é até muito mais difícil que roubar um doce a uma criança”.

É verdade que poucas coisas há mais difíceis que roubar um doce a uma criança mas…mas mesmo assim ainda há algumas. Digo mais, passo a afirmar que enfrentaria a terrível e maquiavélica mente de uma criança (como explicar que afinal é apenas um doce?) e o risco (qual risco? A certeza absoluta) de humilhação eterna a que ela me sujeitaria se, dessa forma, conseguisse descobrir as coisas que passo a enumerar:

De que cor são os meus olhos vistos pelos teus? De que fala, através da espuma, o mar ao bater na areia? Porque vivemos entre o Céu e a Terra (não vivemos Na Terra, vivemos um pouco acima)? E porque existem tantas teorias? Porque se dividem as pessoas entre tantos partidos, religiões, costumes e teimosias? Porque necessito tanto do abraço dos meus amigos? Porque razão só os teus lábios são iguais aos meus, meu amor? Porque não consigo, mesmo queimando os neurónios, escrever um texto e arrancar através dele um sorriso a si, leitor?

Mas atenção, apenas por estas coisas, pela resposta a estas perguntas, eu roubaria um doce a uma criança. Podia ser que quando ela crescesse não me levasse a mal. Afinal ela perceberia que era (e é) do sentido da minha vida que se tratava (e trata). E isso as crianças perdoam. Só os adultos é que não.

10 comentários:

laeienda disse...

Acho que se eu tivesse acceso aos jornales que publicam istos artigos, eu ficaria sem apenas dúvidas na minha vida...
Beijinhos, menino!!
:P

Anónimo disse...

já conhecia o texto e achei bastante graça à construção, à ideia também ;)
'publica-nos' mais artigos no teu blog:)

Rui Cancela disse...

Eventualmente farei isso, mas apenas passado algum tempo de terem sido publicados no jornal; de qualquer forma, aqui no blog parecem-me ficar demasiado extensos.
A ver vamos

NSN disse...

Quizás al final los adultos encontraríamos más sentido si deviniésemos niños, o al menos conformándonos en observar cómo son los niños, a los que se les quita un dulce, y al final acaban comprendiendo que se trataba de una cuestión de dar sentido a la existencia.

Anónimo disse...

Adoro o teu blog, de certa forma consigo sempre encontar-me um pouco naquilo que escreves.

Rui Cancela disse...
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Rui Cancela disse...

Não gosto de agradecer (por palavras), mas o que mais desprezo no mundo é a ingratidão. Explico-me: estar grato significa saber receber e guardar (no armário ou na alma) o que nos oferecem. Passo muitas vezes por mal educado mas é por respeito que o faço. Se me oferecerem uma "coisa" (e aquele cachecol era encantador)ou um abraço ou uma palavra raramente digo obrigado, mas sempre fico grato. Isto não necessita de ser explicado à Silk, Nieves ou a laeinda MAS à Sílvia Pinheiro, que penso desconhecer, era necessário. Só mais uma coisa: curioso alguém encontrar-se onde o próprio autor se perde. Hasta e Obrigado. Que espero não repetir nunca. :)

NuIsIs ZoBoP disse...
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laeienda disse...

Alguien decía (¿era Pascal?) que el corazón tiene razones que la razón no entiende.
Si así es, cierto es también que a veces la razón pide esas explicaciones que el corazón no necesita... y es de agradecer encontrarlas por escrito de vez en cuando, aunque pueda parecerles extraño a nuestros corazones.
;)

NuIsIs ZoBoP disse...
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