segunda-feira, abril 23, 2007

desaparecendo (n)o pensar I



Li, faz algum tempo, que o Miguel Torga se recusou a encontrar com Sartre quando este aqui esteve em 1975 por ser um "francês intelectual" que apenas passeava a sua recusa ao Nobel e o seu "tédio vanguardista". Não é divino? Que nobreza de carácter. Que coisa rara neste lamaçal moderno de baixeza, hipocrisia, piadas que falam sempre do mesmo e tudo o mais que prima pela facilidade. Eu que pensava que exemplos destes de dignidade, de dizer não ao facilitismo, quer seja hipócrita, demagogo ou "humorístico", eram só para uso dos ancestrais, quando o outro pôs a corda ao pescoço e foi ter com o rei castelhano para ele a puxar. Ou quando o outro, que também aprendemos na escola, foi entregar as chaves do castelo ao rei morto para que este abrisse a porta.
Estamos todos a ver bem a cara do pobre Sartre, acabrunhado de vergonha quando lhe foram levar a triste nova de que o Miguel lhe não queria sequer ver a fronha. Possivelmente, de inicio Sartre não acreditou, pensando ser brincadeira, e ainda terá dito: "Pois quê, o Miguel? O Miguel Torga? O Adolfo? Um tipo que eu adoro?" A sério, era verdade, não queria recebê-lo.
Coitado do Sartre, e ele veio lá dos infernos espreitar o Adolfo ao peito, trocar com ele ideias cimeiras sobre o destino do Mundo, para o indecente se negar assim a ter com ele um frente-a-frente fraterno. De certeza que o infeliz do Sartre meteu mesmo os seus empenhos para o outro não ser tão obstinado no seu ressentimento e quebrar na sua dureza nem que fosse por uns minutos históricos. Torga não cedeu. E ainda imagino que deve ter mandado dizerem a Sartre para meter o tédio onde muito bem deve saber, que nós cá na Lusitânia de Trás-os-Montes se temos tédio resolvemo-lo bebendo um litro.
Este Torga! Tão doce! Viveu quase um século a tratar todos os génios por tu. A fazer olhos tenebrosos e a clamar "sou rebelde! sou rebelde!". Pois quem julgava o idiota do Sartre que ia encontrar pela frente? Eram oitocentos anos de portugalidade, ò imbecil, que estavam metidos ali, nos ossos de Torga. Estava lá tudo o que somos e o que produzimos. Não é esta palhaçada. Era a coragem, a vontade, as tripas, o esófago e o barro. Eram bons deuses e espessura da mioleira para pensar.
Coitado do Sartre. Veio ele por aí abaixo, lá dos píncaros do Espírito até ao pedregal lusitano só para falar com o Adolfo. E o outro, muito trombudo, cerrado na sua obstinação: " - não e não. Esse é o tal que anda por aí a pregar o tédio vanguardista. Não o quero" O Torga. Que ternura!

2 comentários:

Anónimo disse...

Quem conheceu o Miguel Torga diz que ele era um homem muito...'duro'.
E também consta que o Sartre, batia na Simone, de vez em quando...
Enfim, já o Marx foi um génio do pensamento económico e político, ainda hoje aparece nos nossos (e mundiais) manuais escolares, e no entanto, consta que era um devasso e caloteiro, viveu quase sempre às custas de outros.
E o Foucault? Aquela segunda linha de vida no bas fond mais sórdido...ui!:)
Mas o Torga era um tipo estranho...como as fragas de Trás-Os-Montes, talvez.

Anónimo disse...

que belo começo!!