domingo, dezembro 13, 2009

Dizem que morreu a ver o mar

Dizem que morreu a ver o mar. Devido a isso consideraram-no estranho. Dizem que não se pode morrer a ver o mar. Ele sim. Ele podia. Ele morria em qualquer lado.
A falta de apego que tinha pela morte e a indiferença para com aquilo que se pode denominar como “ambiente propício” deviam ser as causas para o facto de em qualquer lado ele morrer.
Ao contrário de muitas pessoas para as quais as velas numa mesa de jantar colocada numa varanda com a Lua no céu são o “ambiente propício” para uma declaração de amor, ele nunca se conseguiu emocionar com alguma coisa que não fosse resultado do Acaso; sinónimo de Milagre, obviamente.
As causas sem causa, dizia, essas sim são as nêsperas do mundo – uma expressão que ninguém entendia muito bem.
Dizem que morreu a ver o mar. Dizem que não se pode morrer a ver o mar. Pode morrer-se no mar. Afogado. Em luta. Ou morrer nú no mar. Afogado. Em luta. Inclusive um faroleiro, cujos olhos buscam mais os barcos que o mar, mesmo um faroleiro – esse náufrago dos náufragos – caso tenha, repentinamente, enquanto vigia mais os barcos que as marés, uma trombose, inevitavelmente, dizem, baixará a cabeça, o olhar. Morrerá, caso morra, de olhos no chão porque, dizem, não se pode morrer a ver o mar.
Ele, no entanto, assim dizem que morreu. Mas ele morria em qualquer lado.
Estava encostado à muralha, palma da mão direita no queixo, rodeado de gaivotas, olhando o mar. Não vigiava a maré nem, ao contrário de meia dúzia de surfistas que estavam na areia, contava as ondas esperando a sétima. Não se distraía com o som que a água fazia ao bater na areia, nem reparou nas distintas cores da água devido às várias tonalidades que a luminosidade do ar provocava. Não deu conta de remoinhos, nem do vento ou de algas ou de peixes. Nem de sereias. Era indiferente ao “ambiente propício”. Olhava e via o mar, não as suas características ou propriedades. As causas sem causa, dizia, essas sim são as nêsperas do mundo.
Devo confessar que não sei se é verdade que ele tenha morrido a ver o mar. É estranho que tal tenha acontecido de facto, mas acredito que sim pois ele morria em qualquer lado. O que sim sei com absoluta certeza e que posso garantir é que foi a primeira vez que ele viu o mar. Era serrano, do interior, e, ironicamente, não queria morrer sem ver o mar – desejo esse que felizmente se cumpriu. Pior é o preço do desejo não cumprido.
De qualquer forma nem sequer podemos dizer que houve uma causa directa entre o mar, ele, o olhar e ver o mar e a sua morte. Apenas podemos relatar o facto de que assim dizem que aconteceu. Calcular a causa seria especulação e as nêsperas do mundo, ao contrário da especulação, são reais.
Depois de morrer a ver o mar voltou para casa, para a serra, para o interior. Foi no dia seguinte a ter morrido a ver o mar que o ouviram dizer que estava contente por, finalmente, já ter visto o mar.
Ninguém estranhou, naturalmente, que depois de ter morrido a ver o mar ele não se tivesse mantido morto. Todos sabiam que tinha pouco apego pela morte. Talvez por isso, talvez pela indiferença que tinha pelo “ambiente propício” e talvez porque o coração dele tinha uma parede tão fina que até uma lágrima a cair no rosto de um desconhecido podia partir, talvez por isso, dizia, ele morria em qualquer lado.

2 comentários:

Anónimo disse...

Si no se mantenía muerto tenía realmente poco apego a la muerte!!!
O quizá se apegó a la posibilidad de volver a sus propicias serranías a compartir con los demás la consecución de su deseo (porque ¿de qué sirve cumplir un deseo si el que lo deseaba muere y nadie se entera?).

Muy bonito.
C.

Anónimo disse...

"(...). Pior é o preço do desejo não cumprido. (...)".

É aquele que nos impede de partir, de vez... mesmo na ausência do "ambiente propício".

Finalmente e não certa.